Hoje trazemos aos leitores e amigos do blog a encíclica Quas Primas, escrita pelo saudoso Papa Pio XI, em 11 de dezembro de 1925, na qual foi constituída a Festa de Cristo Rei, que comemoraremos amanhã, dia 28/10, na Forma Extraordinária.
***
Pio XI
Sobre Cristo Rei
(Quas Primas)
II EDIÇÃO
1950
EDITORA VOZES LTDA., Petrópolis, R. J. RIO DE JANEIRO — SÃO PAULO
IMPRIMA-SE
POR COMISSÃO ESPECIAL DO EXMO. E REVMO. SR. DOM MANUEL
PEDRO DA CUNHA CINTRA, BISPO DE PETRÓPOLIS. FREI LAURO OSTERMANN O. F.
M, PETRÓPOLIS, 9-11-1950.
CARTA ENCÍCLICA
aos Veneráveis Irmãos Patriarcas,
Primazes, Arcebispos, Bispos e Outros Ordinários em paz e comunhão com a
Sé Apostólica: sobre Cristo Rei.
PIO PAPA XI
Veneráveis Irmãos, saúde e bênção apostólica.
INTRODUÇÃO.
1. Na primeira Encíclica, dirigida, em
princípios do nosso Pontificado, aos Bispos do mundo inteiro, indagamos a
causa íntima das calamidades que, ante os nossos olhos, avassalam o
gênero humano. Ora, lembra-nos haver abertamente declarado duas coisas:
uma — que esta aluvião de males sobre o universo provém de terem a maior
parte dos homens removido, assim da vida particular como da vida
pública, Jesus Cristo e sua lei sacrossanta; a outra — que baldado era
esperar paz duradoura entre os povos, enquanto os indivíduos e as nações
recusassem reconhecer e proclamar a Soberania de Nosso Salvador. E por
isso, depois de afirmarmos que se deve procurar "a paz de Cristo no
reino de Cristo", manifestamos que era intenção nossa trabalhar para
este fim, na medida de nossas forças. "No reino de Cristo", — dizíamos;
porque, para restabelecer e confirmar a paz, outro meio mais eficiente
não deparávamos, do que reconhecer a Soberania de Nosso Senhor. Com o
correr do tempo, claramente pressentimos o raiar de dias melhores,
quando vimos o zelo dos povos em acudir, — uns pela primeira vez, outros
com renovado ardor, — a Cristo e à sua Igreja, única dispensadora da salvação: sinal manifesto de que
muitos homens, até o presente como que desterrados do reino do Redentor,
por desprezarem sua autoridade, preparam, ainda bem, e levam a efeito
sua volta à obediência.
PREPARAÇÃO PROVIDENCIAL DA NOVA FESTA. O ANO SANTO.
2. Quanto, ao depois, sobreveio, quanto
aconteceu no decorrer do "Ano Santo", digno, na verdade, de eterna
memória, porventura não concorreu eficazmente para a honra e glória do
Fundador da Igreja, de sua soberania, de sua suprema realeza?
Realizou-se, primeiro, a "Exposição
Missionária", que, nos corações e nos espíritos dos homens, produziu tão
profunda impressão. Ali vimos os incansáveis trabalhos empreendidos
pela Igreja, para dilatar cada vez mais o reino de seu Esposo, em todos
os continentes, em todas as ilhas, até nas mais longínquas, perdidas no
oceano. Vimos quantos países conquistaram ao catolicismo à custa de seus
suores, de seu sangue, nossos heróicos e destemidos missionários. Vimos
as imensas regiões que ainda ficam por sujeitar ao domínio benfazejo de
nosso Rei.
Peregrinações jubilares.
Realizaram-se, em seguida, romarias,
vindas a Roma, durante o Ano Santo, de todas as partes do mundo, e
guiadas por seus Bispos ou sacerdotes. Que motivos impeliam esses
peregrinos, senão o desejo de purificarem suas almas e de proclamarem,
junto ao Sepulcro dos Apóstolos e em Nossa presença, que estão e querem
permanecer sob a autoridade de Cristo?
Por fim, conferimos a seis Confessores
ou Virgens as honras dos Santos, depois de cabalmente provadas suas
admiráveis virtudes. Não brilhou, nesse dia, com novo fulgor, o reino de Jesus? Que
gozo, que consolação não foi para Nossa alma, depois de proferirmos os
decretos definitivos, ouvir, no majestoso recinto de S. Pedro, a imensa
multidão os fiéis aclamar com uma só voz, entre cantos de ação de
graças, a realeza gloriosa de Cristo — "Tu Rex gloriae, Christe!" Num
tempo em que indivíduos e estados, joguetes das sedições nascidas do
ódio e discórdias civis, se precipitam para a ruína e a morte, a Igreja
de Deus, prosseguindo a dar ao gênero humano o alimento da vida
espiritual, gera e continua a educar para Cristo gerações sucessivas de
Santos e Santas, e Cristo, por sua vez, não cessa de chamar à eterna
felicidade do seu reino celeste quantos se Lhe demonstraram súditos
fiéis e submissos de seu reino terrestre.
Centenário do Concílio de Nicéia.
Com o grande jubileu coincidiu o 16.°
centenário do Concílio de Nicéia. Mandamos festejar este aniversário
secular, e Nós mesmo o comemoramos na Basílica Vaticana, com tanto
melhor grado, que este Concílio definiu e proclamou dogma de fé católica
a "consubstancialidade" do Unigênito de Deus com seu Pai, e, inserindo
em sua fórmula de fé, ou "Credo", as palavras: "cujo reino não terá fim —
cujus regni non erit finis" — com isto mesmo afirmou a dignidade real
de Cristo.
3. Portanto, já que este ano jubilar, em mais de uma ocasião, contribuiu para pôr em realce a realeza de Cristo, julgamos cumprir um dos atos mais próprios do Nosso ofício apostólico, acedendo às súplicas, assim individuais como coletivas, de numerosos Cardeais, Bispos ou fiéis, e encerrar este ano com introduzir na liturgia da Igreja uma festa especial em honra de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei. Este argumento temo-lo tanto a peito, Veneráveis Irmãos, que desejamos entreter-nos dele convosco alguns instantes. Empenho vosso será, depois, tornar, acessível à inteligência e aos sentimentos populares quanto dissermos sobre o culto de "Cristo-Rei", de modo que a nova festa anual produza agora e no porvir múltiplos frutos.
FUNDAMENTO DOUTRINAL DA NOVA FESTA.
4. Muito há que a linguagem corrente dá a
Cristo o nome de "Rei em sentido metafórico e transposto". "Rei" é
Cristo, com efeito, atenta a eminente e suprema perfeição com que
sobrepuja a todas as criaturas. Assim, dizemos que "reina sobre as
inteligências humanas", por causa da penetração do seu espírito e da
extensão de sua ciência, mas sobretudo porque é a própria Verdade em
pessoa, de quem, portanto, é força que recebam rendidamente os homens
toda verdade. Dizemos que "reina sobre as vontades humanas", porque
n'Ele se alia a indefectível santidade do divino querer com a mais reta,
a mais submissa das vontades humanas; e também porque suas inspirações
entusiasmam nossa vontade livre pelas causas mais nobres. Dizemos,
enfim, que é "Rei dos corações", por causa daquela inefável "caridade
que excede a toda humana compreensão" (Ef 3, 19); e porque sua doçura e
sua bondade atraem os corações: pois nunca houve, no gênero humano, e
nunca haverá quem tanto amor tenha ateado como Cristo Jesus.
5. Aprofundemos sempre mais o nosso
argumento. É manifesto que o nome e o poder de "Rei", no sentido próprio
da palavra, competem a Cristo em sua Humanidade, porque só de Cristo
enquanto homem é que se pode dizer: do Pai recebeu "poder, honra e
realeza" (Dan 7, 13-14). Enquanto Verbo, consubstanciai ao Pai, não pode
deixar de Lhe ser em tudo igual e, portanto, de ter, como Ele, a
suprema e absoluta soberania e domínio de todas as criaturas.
6. Que Cristo seja Rei, não o lemos nós
na Escritura? Ele é o "Dominador oriundo de Jacob" (Num 24, 19), Ele o
"Rei, dado pelo Pai a Sião, sua Santa Montanha, para receber em herança
as nações, e dilatar seu domínio até os confins da Terra" (Sl 2, 6. 8),
Ele o verdadeiro "Rei vindouro" de Israel, que o cântico nupcial nos
representa sob os traços de um soberano opulento e poderoso, a quem se
dirigem estas palavras: "O teu trono, ó Deus, subsistirá por todos os
séculos: a vara de retidão é a vara de teu reino" (Sl 44, 7). Omitindo
muitos passos análogos, deparamos além, como, para delinear com maior
nitidez a fisionomia de Cristo, vem predito que seu reino desconhecerá
fronteiras e desfrutará os tesouros da justiça e da paz. "Nos dias
d'Ele, aparecerá justiça e abundância de paz... E dominará de mar a mar,
e desde o rio até os confins da Terra" (SL 71, 7-8). A esses
testemunhos, juntam-se mais numerosos ainda os oráculos dos Profetas, e
notadamente a tão conhecida profecia de Isaías: "Já um Pequenino se acha
nascido para nós, e um filho nos foi dado, e foi posto o principado
sobre o seu ombro; e o nome com que se apelide será Admirável,
Conselheiro, Deus, Forte, Pai do futuro século, Príncipe da Paz. O seu
império se estenderá cada vez mais, e a paz não terá fim; assentar-se-á
sobre o trono de David e sobre o seu reino, para o firmar e fortalecer
em juízo e justiça, desde então e para sempre" (Is 9, 6-7).
7. Não é outro o modo como se expressam
os demais Profetas. Assim fala Jeremias, quando prenuncia à descendência
de David "um germe de justiça", esse filho de David, que reinará como
Rei, "será sábio e obrará segundo a equidade e justiça na Terra" (Jer
23, 5). Assim Daniel, quando prediz a constituição por Deus de um reino
"que não será jamais dissipado... e que durará eternamente" (Dan 2, 44).
E pouco depois acrescenta: "Eu considerava estas coisas numa visão de
noite, e eis que vi um, como o Filho do Homem, que vinha com as nuvens
do Céu, e que chegou até o Antigo dos dias; e eles o
apresentaram diante d'Ele. E Ele Lhe deu o poder, e a honra, e o reino;
todos os povos, e tribos e línguas o servirão: o seu poder é um poder
eterno, que Lhe não será tirado, e o seu reino tal, que não será jamais
corrompido" (Dan 7, 13-14). Assim Zacarias, quando profetiza a entrada
em Jerusalém, entre as aclamações do povo, do "Justo e Salvador", do Rei
cheio de mansidão "montado sobre uma jumenta, e sobre o potrinho da
jumenta" (Zac 9, 9). E não apontaram os Evangelistas o cumprimento desta
profecia?
Testemunho do Novo Testamento.
8. Esta doutrina de "Cristo Rei", que
acabamos de esboçar segundo os livros do Antigo Testamento, bem longe de
apagar-se nas páginas do Novo, vem ali, ao invés, confirmada do modo
mais esplêndido e em termos admiráveis. Bastará lembrar apenas a
mensagem do Arcanjo à Virgem, a anunciar-lhe que dará à luz um Filho; a
este Filho, Deus outorgará "o trono de David, seu pai, e reinará
eternamente na casa de Jacob, e seu reino não terá fim" (Lc 1, 32-33).
Ouçamos agora o testemunho do próprio Cristo no tocante à sua soberania.
Sempre que se Lhe oferece ensejo, — em seu último discurso ao povo,
sobre a recompensa e os castigos que, na vida eterna, aguardam os justos
e os maus; em sua resposta ao governador romano que Lhe perguntara se
era Rei; depois de sua ressurreição, quando confia aos Apóstolos a
missão de instruírem e batizarem todas as nações, — reivindica o título
de "Rei" (Mt 25, 31-40), e publicamente declara que é "Rei" (Jo 18, 37) e
que "todo poder Lhe foi dado no Céu e sobre a Terra" (Mt 28, 18). Que
entende com isto, senão afirmar a extensão de sua potência, a imensidade
do seu reino? À vista disto, deverá fazer-nos estranheza que S. João o
proclame "Príncipe dos reis da terra? (Apoc 1, 5) ou que, aparecendo o
próprio Jesus ao mesmo Apóstolo em suas visões proféticas "traga escrito
no vestido e na coxa: Rei dos reis e Senhor dos senhores"? (Apoc 19,
16). O Pai, com efeito, constituiu a Cristo "herdeiro de todas as coisas"
(Heb 1, 1). Cumpre que reine até o fim dos tempos, quando "arrojará
todos os seus inimigos sob os pés de Deus e do Pai" (1 Cor 15, 25).
9. Desta doutrina comum a todos os
livros santos, naturalmente dimana a seguinte conseqüência: justo é que a
Igreja Católica, reino de Cristo na Terra, chamada a estender-se a
todos os homens, a todas as nações do universo, multiplicando os preitos
de veneração, celebre, no ciclo anual da Liturgia Santa, a seu Autor e
Instituidor como a Rei, como a Senhor, como a Rei dos reis. Com
admirável variedade de fórmulas, estas homenagens expressam um e o mesmo
pensamento; desses títulos servia-se a Igreja outrora no divino ofício e
nos antigos sacramentados; repete-os ainda agora, nas preces públicas,
que todos os dias dirige à Infinita Majestade e na oblação da Hóstia
Imaculada. Nesse louvor ininterrupto de Cristo-Rei, nota-se para logo a
formosa harmonia dos nossos ritos com os ritos orientais, verificando-se
aqui também a verdade, do prolóquio: "as normas da oração confirmam os
princípios da Fé".
10. O fundamento sobre que pousa esta
dignidade e poder de Nosso Senhor, define-o exatamente S. Cirilo de
Alexandria, quando escreve: "Numa palavra, possui o domínio de todas as
criaturas, não pelo ter arrebatado com violência, senão em virtude de
sua essência e natureza" (In Lucam, 10). Esse poder dimana daquela
admirável união que os teólogos chamam de "hipostática". Portanto, não
só merece Cristo que anjos e homens O adorem como a seu Deus, senão que
também devem homens e anjos prestar-Lhe submissa obediência como a
Homem. E assim, só em força dessa união, a Cristo cabe o mais absoluto
poder sobre todas as criaturas, posto que, durante sua vida mortal,
renunciasse ao exercício desse domínio.
— Mas haverá, outrossim, pensamento mais
suave do que refletir que Cristo é nosso Rei não só por direito de
natureza, mas também a título de Redentor? Lembrem-se os homens
esquecidos de quanto custamos a nosso Salvador. "Não fostes resgatados a
preço de coisas perecíveis, prata e outro, mas com o sangue precioso de
Cristo, como de cordeiro sem mancha nem defeito" (1 Ped 1, 18-19). Já
nos não pertencemos, pois que deu Cristo por nós "tão valioso resgate"
(1 Cor 6, 20). Até nossos corpos são "membros de Cristo" (1 Cor 6, 15).
ÍNDOLE DA REALEZA DE CRISTO
A Cristo-Rei cabe o poder legislativo, judicial, executivo.
11. Para dizer, em poucas palavras, a
importância e índole desta realeza, será apenas necessário asserir que
abrange um tríplice poder constitutivo, essencial de toda realeza
verdadeira. Provam-no de sobejo os testemunhos de toda a Escritura no
tocante à dominação universal de nosso Redentor, e é artigo de fé
católica: Cristo Jesus foi dado aos homens não só como Redentor, que
lhes merece toda confiança, mas também como Legislador, a quem devemos
prestar obediência (Conc. Trid., Sess. 6, can. 21). E com efeito, não
dizem os Evangelhos tão só que promulgou leis, mas no-lo representam no
ato de promulgar as leis. A quantos observarem os seus preceitos,
declara o Divino Mestre, em várias ocasiões e de diversos modos, que com
isto mesmo Lhe hão de provar o seu amor e permanecer em sua caridade
(Jo 14, 15); 15, 10). — Quanto ao "poder judicial", declara o próprio
Jesus havê-lo recebido de seu Pai, em resposta aos judeus, que o haviam
acusado de violar o descanso do sábado, curando milagrosamente, neste
dia, a um paralítico. "O Pai, disse-lhes o Salvador, não julga a
ninguém, mas deu todo juízo ao Filho" (Jo 5, 22). Esse poder judicial
igualmente inclui o "direito", — que se não pode dele separar, — de
"premiar" e "punir" aos homens, mesmo durante a vida. — A Cristo compete o "poder executivo", porquanto
devem todos sujeitar-se ao seu domínio, e quem for rebelde não poderá
evitar a condenação e os suplícios, que Jesus prenunciou.
12. Esta realeza, porém, é
principalmente interna e respeita sobretudo a ordem espiritual.
Provam-no com toda evidência as palavras da Escritura acima referidas,
e, em muitas circunstâncias, o proceder do próprio Salvador. Quando os
judeus, e até os Apóstolos, erradamente imaginavam que o Messias
libertaria seu povo para restaurar o reino de Israel, Jesus desfez o
erro e dissipou a ilusória esperança. Quando, tomada de entusiasmo, a
turba, que O cerca, O quer proclamar rei, com a fuga furta-se o Senhor a
estas honras, e oculta-se. Mais tarde, perante o governador romano,
declara que seu reino "não é deste mundo". Neste reino, tal como no-lo
descreve o Evangelho, é pela penitência que devem os homens entrar.
Ninguém, com efeito, pode nele ser admitido sem a fé e o batismo; mas o
batismo, conquanto seja um rito exterior, figura e realiza uma
regeneração interna. Este reino opõe-se ao reino de Satanás e ao poder
das trevas; de seus adeptos exige o desprendimento não só das riquezas e
dos bens terrestres, como ainda a mansidão, a fome e sede da justiça, a
abnegação de si mesmo, para carregar com a cruz. Foi para adquirir a
Igreja que Cristo, enquanto "Redentor", verteu o seu sangue; para isto
é, que, enquanto "Sacerdote", se ofereceu e de contínuo se oferece como
vítima. Quem não vê, em conseqüência, que sua realeza deve ser de índole
toda espiritual, e participar da natureza deste seu duplo ofício?
13. Todavia, fora erro grosseiro denegar
a Cristo Homem a soberania sobre as coisas temporais todas, sejam quais
forem. Do Pai recebeu Jesus o mais absoluto domínio das criaturas, que
Lhe permite dispor delas todas como Lhe aprouver. Contudo, enquanto
viveu sobre a Terra, absteve-se totalmente de exercer este domínio temporal, e desprezou a
posse e regimento das coisas humanas, que deixou — e deixa ainda — ao
arbítrio e domínio dos homens. Verdade graciosamente expressa no
conhecido verso: "Não arrebata diademas terrestres, quem distribui
coroas celestes. — Non eripit mortalia, qui regna dat caelestia" (Hino
Crudelis Herodes, of. da Epif.).
14. Assim, pois, a realeza do nosso
Redentor abraça a totalidade dos homens. Sobre este ponto, de muito bom
grado fazemos Nossas as palavras seguintes de Nosso Predecessor Leão
XIII, de imortal memória: "Seu império não abrange tão só as nações
católicas ou os cristãos batizados, que juridicamente pertencem à
Igreja, ainda quando dela separados por opiniões errôneas ou pelo cisma:
estende-se igualmente e sem exceções aos homens todos, mesmo alheios à
fé cristã, de modo que o império de Cristo Jesus abarca, em todo rigor
da verdade, o gênero humano inteiro" (Encícl. Annum Sacrum, 25 de Maio
de 1899). E, neste particular, não cabe fazer distinção entre os
indivíduos, as famílias e os estados; pois os homens não estão menos
sujeitos à autoridade de Cristo em sua vida coletiva do que na vida
individual. Cristo é fonte única de salvação para as nações como para os
indivíduos. "Não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do Céu
nenhum outro nome foi dado aos homens, pelo qual nós devamos ser salvos"
(At 4, 12). Dele provêm ao estado como ao cidadão toda prosperidade e
bem-estar verdadeiro. "Uma e única é a fonte da ventura, assim para as
nações como para os indivíduos, pois outra coisa não é a cidade mais que
uma multidão concorde de indivíduos" (S. Aug., Epíst. ad Macedonium, c.
3). Não podem, pois, os homens de governo recusar à soberania de
Cristo, em seu nome pessoal e no de seus povos, públicas homenagens de
respeito e submissão. Com isto, sobre estearem o próprio poder, hão de
promover e aumentar a prosperidade nacional.
BENEFÍCIOS SOCIAIS DESTA REALEZA
Crise da autoridade.
15. Ao subirmos à cátedra pontifical,
deplorávamos o lastimável decaimento em que vemos abatido o prestígio do
direito e a reverência à autoridade. Quanto então dizíamos não é hoje
menos atual ou oportuno. "Excluídos da legislação e dos negócios
públicos Deus e Jesus Cristo, e derivando, os que regem, o seu poder,
não já do alto, mas dos homens, aconteceu que ruiu o próprio fundamento
da autoridade, em conseqüência de estar removida a razão fundamental do
direito que a uns assiste de mandar, e da obrigação conseqüente que têm
outros de obedecer. Seguiu-se daí forçosamente um abalo na humana
sociedade inteira, falha assim de amparo e sustentáculo firme" (Encícl.
Ubi arcano, DP 19). Se soubessem resolver-se os homens a reconhecer a
autoridade de Cristo em sua vida particular e pública, para logo deste
ato dimanariam em toda a humanidade incomparáveis benefícios: —: uma justa liberdade, a ordem e o sossego, a concórdia e a paz.
No interior dos estados.
16. Com dar à autoridade dos príncipes e
chefes de governo certo caráter sagrado, a dignidade real de Nosso
Senhor enobrece com isto mesmo os deveres e a sujeição dos cidadãos.
Tanto assim que o Apóstolo S. Paulo, depois de prescrever às mulheres
casadas e aos escravos de reconhecerem a Cristo na pessoa de seus
maridos e senhores, lhes recomendava, ainda assim, de obedecerem não
servilmente, como a homens, mas tão só em espírito de fé como a
representantes de Cristo, porque ,é indigno de uma alma resgatada por
Cristo obedecer com servilismo a um homem. "Fostes resgatados com grande
preço: não estejais sujeitos já como escravos a homens" (1 Cor 7, 23).
Se os príncipes e governos legitimamente constituídos tivessem a
persuasão de que regem menos no próprio nome do que em nome e lugar do
Rei Divino, é manifesto que usariam do seu
poder com toda a prudência, com toda a sabedoria possíveis. Em legislar e
na aplicação das leis, como haveriam de atender ao bem comum e à
dignidade humana de seus súbditos! Então floresceria a ordem, então
víramos difundir-se e firmar-se a tranqüilidade e a paz; embora o
cidadão reconhecesse nos príncipes e chefes de governo homens iguais a
si pela natureza ou mesmo, por algum respeito, indignos ou
repreensíveis, não deixara por isto de lhes obedecer, por depreender
neles a imagem e autoridade de Cristo, Deus-Homem.
Vantagens sociais para as nações.
17. Pelo que respeita à concórdia e à
paz, é manifesto que, quanto mais vasto é um reino, quanto mais
largamente abraça o gênero humano, tanto é maior a consciência em seus
membros do vínculo de fraternidade que os une. Esta consciência, assim
como remove e dissipa os freqüentes conflitos, assim também atenua e
suaviza os amargores que dos conflitos nascem. E se o reino de Cristo
abarcara de fato, como de direito abarca, as nações todas, porque
deveríamos perder a esperança dessa paz que à Terra veio trazer o Rei
pacífico, esse Rei que veio "para reconciliar todas as coisas" (Col 1,
20), "que não veio para ser servido, mas para servir aos outros" (Mc 10,
45) e que, embora "Senhor de todos" (Gál 4, 1), deu exemplo de
humildade e principalmente inculcou esta virtude, de envolta com a
caridade, acrescentando: "Meu jugo é suave, e é leve minha carga" (Mt
11, 30). Oh! que ventura não pudéramos gozar, se os indivíduos, se as
famílias, se a sociedade se deixasse reger por Cristo! "Então,
finalmente — para citarmos as palavras que, há 25 anos, Nosso
Predecessor Leão XIII dirigia aos Bispos do mundo inteiro — então fora
possível sanar tantas feridas; o direito recobrara seu antigo viço, seu
prestígio de outras eras; então tornaria a paz com todos os seus
encantos e cairiam das mãos armas e espadas, quando todos de bom grado aceitassem o império de Cristo, Lhe
obedecessem, e toda língua proclamasse que "Nosso Senhor Jesus Cristo
está na glória de Deus Padre" (Ene. Annum Sacrum).
A FESTA DE JESUS CRISTO-REI
18. E a fim de que a sociedade cristã
goze largamente de tão preciosas vantagens e para sempre as conserve, é
mister que se divulgue quanto possível o conhecimento da dignidade real
de Nosso Salvador. Ora, nada pode, pelo que Nos parece, conseguir melhor
este resultado, do que a instituição de uma festa própria e especial em
honra de Cristo-Rei.
Influência da liturgia na vida cristã.
19. Com efeito, para instruir o povo nas
verdades da fé e levá-lo assim às alegrias da vida interna, mais
eficazes que os documentos mais importantes do Magistério eclesiástico
são as festividades anuais dos sagrados mistérios. Os documentos do
Magistério, de fato, apenas alcançam um restrito número de espíritos
mais cultos, ao passo que as festas atingem e instruem a universalidade
dos fiéis. Os primeiros, por assim dizer, falam uma vez só, as segundas
falam sem interminência de ano para ano; os primeiros dirigem-se,
sobretudo, ao entendimento; as segundas influem não só na inteligência,
mas também no coração, quer dizer — no homem todo. Composto de corpo e
alma, precisa o homem dos incitamentos exteriores das festividades, para
que, através da variedade e beleza dos sagrados ritos, recolha no ânimo
a divina doutrina, e, transformando-a em substância e sangue, tire dela
novos progressos em sua vida espiritual.
Origem histórica e providencial das festas na Igreja.
20. Além disso, ensina-nos a própria
história, que estas festividades litúrgicas foram introduzidas, no
decorrer dos séculos, umas após outras, para responder a necessidades ou
vantagens espirituais do povo cristão. Foram-se constituindo para fortalecer os ânimos em presença de
algum perigo comum, para premunir os espíritos contra os ardis da
heresia, para mover e inflamar os corações a celebrar com mais ardente
piedade algum mistério de nossa fé ou algum benefício da divina graça.
Assim é que, desde os primeiros tempos da era cristã, quando, acossados
das mais cruentas perseguições, os fiéis começaram, com sagrados ritos, a
comemorar os mártires, para que — como diz S. Agostinho — "as
solenidades dos mártires fossem exortação ao martírio" (Sermo 47, de
Sanctis). As honras litúrgicas, mais tardes decretadas aos confessores,
às virgens, às viúvas, contribuíram singularmente para promover nos
fiéis o zelo pela virtude, indispensável mesmo em tempo de paz.
Especialmente as festas em honra da Virgem Beatíssima fizeram com que o
povo cristão não só tributasse à Mãe de Deus, sua Protetora por
excelência, culto mais assíduo, senão que ao mesmo tempo fosse de
contínuo crescendo seu amor filial à Mãe que o Redentor lhe deixara como
que em testamento. Dentre os benefícios que dimanaram do culto público e
legitimamente prestado à Mãe de Deus e aos Santos do Céu, não é o menor
a vitória constante com que a Igreja se cobriu de louros, ao debelar e
repelir a heresia e o erro. E nisto devemos admirar os desígnios da
Divina Providência, que, segundo costuma, tira o bem do mal. Permitiu
que, de tempos a tempos, entibiasse a fé e a piedade popular; permitiu
que doutrinas errôneas armassem insídias à piedade católica, mas sempre
com o intuito de fazer finalmente fulgir a verdade com novo esplendor e
mover os fiéis, espertos da tibieza, a tenderem com novo zelo a graus
mais elevados de santidade e perfeição cristã. Idêntica é a origem,
idênticos os frutos que produziram as solenidades recentemente
introduzidas no calendário litúrgico. Tal é a festa do "Corpus Christi",
instituída quando se esfriava a reverência e o culto para com o SS.
Sacramento; celebrada com brilho singular, protraída por oito dias de
suplicações coletivas, a nova solenidade devia reconduzir os povos à
adoração pública do Senhor. Tal é a festa do Coração Santíssimo de Jesus
estabelecida na época em que, abatidos e desalentados pelas tristes
doutrinas e o rigorismo sombrio do jansenismo, os fiéis sentiam seus
corações regelados e com escrúpulo deles excluíam todo sentimento de
amor de Deus e a esperança de conseguirem a eterna salvação.
Oportunidade da festa.
21. Para Nós também soou a hora de
provermos às necessidades dos tempos presentes e de opormos um remédio
eficaz à peste que corrói a sociedade humana. Fazemo-lo, prescrevendo ao
universo católico o culto de Cristo-Rei. Peste de nossos tempos é o
chamado "laicismo", com seus erros e atentados criminosos.
Excessos do laicismo.
22. Como bem sabeis, Veneráveis Irmãos,
não é num dia que esta praga chegou à sua plena maturação; há muito,
estava latente nos estados modernos. Começou-se, primeiro, a negar a
soberania de Cristo sobre todas as nações; negou-se, portanto, à Igreja o
direito de doutrinar o gênero humano, de legislar e reger os povos em
ordem à eterna bem-aventurança. Aos poucos, foi equiparada a religião de
Cristo aos falsos cultos e indecorosamente rebaixada ao mesmo nível.
Sujeitaram-na, em seguida, à autoridade civil, entregando-a, por assim
dizer, ao capricho de príncipes e governos. Houve até quem pretendesse
substituir à religião de Cristo um simples sentimento de religiosidade
natural. Certos estados, por fim, julgaram poder dispensar-se do próprio
Deus e fizeram consistir sua religião na irreligião e no esquecimento
consciente e voluntário de Deus.
Frutos perniciosos do laicismo.
23. Os frutos sobremodo amargosos que,
tantas vezes e com tanta persistência, produziu esta apostasia dos
indivíduos e dos estados, que desertam a Cristo, expendemo-los na Encíclica "Ubi arcano".
Tornamos a lamentá-los hoje. Frutos desta apostasia são os germes de
ódio esparsos por toda parte, as invejas e rivalidades entre nações, que
alimentam as discórdias internacionais e dificultam ainda agora a
restauração da paz; frutos desta apostasia as ambições desenfreadas, que
muitas vezes se encobrem com a máscara do interesse público e do amor
da pátria, e suas tristes conseqüências: dissensões civis, egoísmo cego e
desmedido, sem outro fito nem outra regra mais que vantagens pessoais e
proveitos particulares. Fruto desta apostasia a perturbação da paz
doméstica, pelo esquecimento e desleixo das obrigações familiares, o
enfraquecimento da união e estabilidade no seio das famílias, e por fim o
abalo na sociedade toda, que ameaça ruir.
Pusilanimidade de certos católicos.
24. A festa, doravante ânua, de
"Cristo-Rei" dá-nos a mais viva esperança de acelerarmos a tão desejada
volta da humanidade a seu Salvador amantíssimo. Fora, com certeza, dever
dos católicos, apressar e preparar esta volta com diligente empenho; a
muitos deles, contudo, pelo que parece, não toca, na sociedade civil, o
posto e a autoridade que conviriam aos apologistas da fé. Talvez deva
este fato atribuir-se à indolência e timidez dos bons que se abstêm de
toda resistência, ou resistem com moleza, donde provém, nos adversários
da Igreja, novo acréscimo de pretensões e de audácia. Mas, desde que a
massa dos fiéis se compenetre de que é obrigação sua combater com
valentia e sem tréguas sob os estandartes de Cristo-Rei, o zelo
apostólico abrasará seus corações, e todos se esforçarão de reconciliar
com o Senhor as almas que o ignoram ou dele desertaram; todos, enfim, se
esforçarão por manter inviolados os direitos do próprio Deus.
Protesto e reparação.
25. Mas não basta. Uma festa, anualmente celebrada por todos os povos em homenagem a Cristo-Rei, será sobremaneira eficaz para condenar e
ressarcir, de algum modo, esta apostasia pública, tão desastrada para
as nações, gerada pelo laicismo. Com efeito, quanto mais vergonhosamente
se passa em silêncio, quer nas conferências internacionais, quer nos
Parlamentos, o nome suavíssimo do nosso Redentor, tanto mais alto o
devemos aclamar, tanto mais devemos reconhecer os direitos que a Cristo
conferem sua dignidade e poder real.
CONVENIÊNCIAS ATUAIS DA INSTITUIÇÃO DA FESTA.
Precedentes da festa de Cristo-Rei.
26. E quem não vê que, desde os últimos
anos do século passado, se ia, de modo admirável, preparando o caminho à
instituição desta festa? Ninguém, com efeito, ignora como, com livros
que se escreveram nas várias línguas do mundo inteiro, este culto foi
explicado e doutamente defendido. Sabem todos que a autoridade e realeza
de Cristo foi já reconhecida pela piedosa prática de se consagrarem e
dedicarem ao Sagrado Coração de Jesus famílias inumeráveis. E não só
famílias, mas também estados e reinos praticaram o mesmo ato. Antes, por
iniciativa e direção de Leão XIII, o universo gênero humano foi
felizmente consagrado a este Coração Santíssimo, no correr do Ano Santo
de 1900. Não podemos preterir os congressos eucarísticos que nossa época
viu multiplicar-se em tão grande número. Tão bem serviram à causa da
solene proclamação humana. Reunidos para apresentar à veneração e às
homenagens populares de uma diocese, de uma província, de uma nação, ou
mesmo do mundo inteiro, Cristo-Rei, oculto sob os véus eucarísticos,
esses congressos, em conferências realizadas nas suas assembléias, em
sermões proferidos nas igrejas, por meio da exposição pública ou da
adoração em comum do Santíssimo Sacramento e de grandiosas procissões,
enaltecem a Cristo como a Rei que de Deus receberam os homens. Este
Jesus, que os ímpios recusaram acolher quando veio a seu reino, pode-se dizer, com
toda a verdade, que o povo cristão, movido de uma inspiração divina, vai
arrancá-l'O ao silêncio e, por assim dizer, à obscuridão dos templos,
para levá-l'O, qual triunfador, pelas ruas das grandes cidades e
reintegrá-1'O em todos os direitos de sua realeza.
Excelentes disposições dos fiéis ao saírem do jubileu.
27. Para a realização deste Nosso
desígnio, de que acabamos de falar, oferece-Nos ensejo sumamente
oportuno o "Ano Santo" que finda. Este ano veio relembrar ao espírito e
ao coração dos fiéis os bens celestes que sobrepujam todo sentimento
natural. Em sua bondade infinita, Deus restitui a uns a sua graça, e
confirma a outros no bom caminho, infundindo-lhes novo ardor para
aspirarem a dons mais perfeitos. Quer atendamos às numerosas súplicas
que nos foram dirigidas, quer consideremos os acontecimentos que se
dirigidas, quer consideremos os acontecimentos que se deram no correr do
"Ano Santo", sobeja razão nos assiste de pensarmos que deveras para Nós
soou a hora de proferirmos a sentença tão ansiosamente de todos
aguardada e que decretemos uma festa especial em honra de Cristo, Rei de
todo o gênero humano. Durante este ano, com efeito, como a princípio
dissemos, este divino Rei, deveras admirável em seus Santos, conquistou
novos triunfos, com a elevação às honras dos altares de mais um manípulo
de soldados seus. Durante este ano, uma exposição extraordinária pôs
ante os olhos do mundo as fadigas e, de algum modo, os próprios
trabalhos dos arautos do Evangelho, e todos puderam admirar as vitórias
ganhas por esses campeões de Cristo, para a extensão do seu reino;
durante este ano, finalmente, com o centenário do Concílio de Nicéia,
comemoramos, contra os seus detratores, a defesa e definição do dogma da
consubstancialidade do Verbo Humanado com seu Pai, verdade na qual
descansa, como em fundamento, a soberania de Cristo sobre todos os
povos.
Data e modalidade da festa.
28. Portanto, em virtude de Nossa
autoridade apostólica, instituímos a festa de "Nosso Senhor Jesus Cristo
Rei", mandando que seja celebrada cada ano, no mundo inteiro, no último
domingo de Outubro imediato à solenidade de Todos os Santos.
Prescrevemos igualmente que, cada ano, se renove, nesse dia, a
consagração do gênero humano ao Coração de Jesus, que já Nosso
Predecessor de saudosa memória Pio X ordenara se fizesse anualmente.
Contudo, queremos que, neste ano, a renovação se faça a 31 de Dezembro;
nesse dia, celebraremos missa pontifical em honra de "Cristo-Rei", e
mandaremos proferir, em Nossa presença, o ato de consagração. Quer
parecer-Nos que não pode haver melhor encerramento do "Ano Santo", e que
destarte daremos a "Cristo, Rei Imortal dos séculos", o testemunho mais
eloqüente de nossa gratidão e do reconhecimento do universo católico,
de quem Nos fazemos intérpretes, pelos benefícios que, neste período de
graças, concedeu a Nós mesmo, à Igreja, à cristandade toda.
Objeto formal da nova festa.
29. É escusado, Veneráveis Irmãos,
explicar-vos longamente os motivos de uma festa especial em honra de
"Cristo-Rei". Pois, conquanto outras festas, já existentes, enalteçam e
de algum modo glorifiquem sua dignidade real, basta, contudo, observar
que, se todas as festas de Nosso Senhor têm a Cristo, segundo a
linguagem dos teólogos, por "objeto material", de modo algum é o poder e
apelativo de Rei "objeto formal" das mesmas.
Seu lugar no ciclo litúrgico.
30. Fixando a nova festa em um domingo,
quisemos que o clero fosse o único em prestar suas homenagens a
"Cristo-Rei", com a celebração do Santo Sacrifício e a reza do Santo
Ofício, mas que o povo, desimpedido de suas ocupações ordinárias, e
animado de santa alegria, pudesse dar a Cristo, como a
seu Senhor e Soberano, um manifesto
testemunho de obediência. Finalmente mais apropriado Nos pareceu o
último domingo de Outubro, porque este domingo, em certo modo, encerra o
ciclo do ano litúrgico; destarte, os mistérios da vida de Jesus Cristo,
comemorados no decorrer do ano que finda, terão na solenidade de
"Cristo-Rei" seu como termo e coroa, e antes de celebrar a glória de
todos os Santos, a liturgia proclamará e enaltecerá a glória d'Aquele
que em todos os Santos e em todos os eleitos triunfa. É dever, é direito
vosso, Veneráveis Irmãos, fazer preceder a festa por uma série de
instruções que se dêem, em dias determinados, nas diferentes paróquias,
para instruir acuradamente o povo da natureza, significado e importância
desta festa, por onde os fiéis regulem a sua vida em modo a torná-la
digna de súbditos leais e submissos de coração à soberania do Divino
Rei.
31. Ao fecharmos esta carta, quiséramos
ainda, Veneráveis Irmãos, expor-vos brevemente os frutos, que, tanto
para a Igreja e a sociedade civil, como para cada um dos fiéis,
esperamos deste culto público prestado a Cristo-Rei.
Melhor compreensão dos direitos da Igreja.
32. A obrigação de tributar à soberania
de Nosso Senhor as homenagens, a que nos referimos, relembra,
juntamente, aos homens os direitos da Igreja. Instituída por Cristo, que
lhe deu a forma orgânica de sociedade perfeita, exige, em virtude deste
direito, que dimana de sua origem divina e que ela não pode abdicar, a
plena liberdade, a independência absoluta do poder civil. No desempenho
de sua divina missão, de ensinar, reger e conduzir à eterna felicidade
todos os membros do reino de Cristo, não pode, de modo algum, depender
de vontade estranha. Antes, idêntica liberdade deve o estado conceder às
ordens e congregações religiosas de ambos os sexos, pois são os
auxiliares mais firmes dos Pastores da Igreja, os que mais eficazmente se
empenham em difundir e confirmar o reinado de Cristo, primeiro debelando
em si, com a profissão religiosa, o mundo e sua tríplice
concupiscência, e depois, pelo fato de haverem abraçado uma profissão de
vida mais perfeita, fazendo resplandecer aos olhos de todos, com fulgor
contínuo e cada dia crescente, esta santidade de que o divino Fundador
quis fazer uma nota distinta de sua Igreja autêntica.
Restauração do culto público e oficial.
33. Com a celebração ânua desta festa
hão de relembrar-se, outrossim, os Estados que aos governos e à
magistratura incumbe a obrigação, bem assim como aos particulares, de
prestar culto público a Cristo e sujeitar-se às suas leis. Lembrar-se-ão
também os chefes da sociedade civil do juízo final, quando Cristo
acusará aos que o expulsaram da vida pública, e a quantos, com desdém, o
desprezaram ou desconheceram; de tamanha afronta há de tomar o Supremo
Juiz a mais terrível vingança; seu poder real, com efeito, exige que o
Estado se reja totalmente pelos mandamentos de Deus e os princípios
cristãos, quer se trate de fazer leis, ou de administrar a justiça, quer
da educação intelectual e moral da juventude, que deve respeitar a sã
doutrina e a pureza dos costumes.
Grande impulso à piedade dos fiéis.
34. Que energias, além disso, que
virtude não poderão os fiéis haurir da meditação destas verdades, para
amoldar seus espíritos aos princípios verdadeiros da vida cristã! Se
todo o poder foi dado ao Senhor Jesus, no céu e na terra, se os homens,
resgatados pelo seu sangue preciosíssimo, se tornam, com novo título,
súditos de seu império, se, finalmente, este poder abraça a natureza
humana em seu conjunto, é claro que nenhuma de nossas faculdades se pode
subtrair a essa realeza. É mister, pois, que reine em nossas
inteligências: com plena submissão, com adesão firme e constante,
devemos crer as verdades reveladas e os ensinos de Cristo. É
mister que reine em nossas vontades: devemos observar as leis e os
mandamentos de Deus. É mister que reine em nossos corações: devemos
mortificar nossos afetos naturais, e amar a Deus sobre todas ,as coisas.
É mister que reine em nossos corpos e em nossos membros: devemos
transformá-los em instrumentos, ou, para falarmos com S. Paulo (Rom 6,
13), "em armas de justiça, oferecidas a Deus", para aumento da santidade
de nossas almas. Eis os pensamentos que, propostos à reflexão dos fiéis
e atentamente ponderados, hão de facilmente levá-los a mais elevada
perfeição.
35. Praza a Deus, Veneráveis Irmãos, que
os homens, afastados da Igreja, procurem e aceitem, para salvação de
suas almas, o jugo suave de Cristo. Quanto a nós todos, por divina
misericórdia, súbditos e filhos seus, queira Deus que levemos este jugo,
não de má vontade, mas com prazer, mas com amor, mas santamente. Assim,
no decorrer de uma vida pautada pelas leis do reino do céu,
recolheremos, alegres, grande cópia de frutos, e mereceremos que Cristo,
reconhecendo-nos por bons e fiéis servidores de seu reino terrestre,
nos admita, depois, a participar com Ele da eterna felicidade e da
glória sem fim em seu reino celeste.
Aceitai, Veneráveis Irmãos, ao
decorrerem as festas natalícias do Senhor, este presságio e este
augúrio, como prova de Nosso paternal afeto, e, como penhor de divinos
favores, recebei a bênção apostólica, que, com toda a alma, vos
concedemos a Vós, Veneráveis Irmãos, ao vosso clero e à vossa grei.
Dada em Roma, junto a S. Pedro, aos 11 de Dezembro do Ano Santo de 1925, quarto do Nosso Pontificado. PIO PP. XI
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